Caos cinza, caos marrom
As cores da cidade em meio a maior tragédia do Rio Grande do Sul
O espaço urbano, “naturalmente”, é meio hostil.
A prevalência do cinza promove um tipo de monotonia cromática um tanto deprimente: o cinza é uma cor sem graça, convenhamos. As pessoas até pintam suas casas, colocam uns penduricalhos pra dar vida, mas, às vezes, tudo parece cinza. As árvores, as flores, o sol da primavera...numa visão pragmática, antipoética, como é natural na cidade: cinza. Nas cidades, prevalece o concreto. O concreto é, invariavelmente, cinza. Cinza é o resto de um processo completo de combustão: cinza é o que sobra...
A cidade cinza se converte num organismo pulsante onde átomos humanos pululam entre veias estéreis acinzentadas que chamamos ruas. Essa pulsação é caótica. A cidade, o espaço urbano, melhor dizendo, é um caos cinza.
Mas nada supera o caos marrom. Ruas onde se tem a impressão de que uma bomba de barro explodiu na frente de cada casa. Escombros, entulhos, ou qualquer palavra dessas que soa como um apêndice da palavra destruição, é o que compõe o vocabulário visual de quem observa o cenário. É terrível! Como se fosse aquelas imagens em preto e branco da Berlim do pós-guerra, só que em tom meio sépia, amarronzado. Uma cena da guerra vencida pela natureza.
Minha mãe teve contato mais concreto com a coisa toda. A água entrou até metade da casa. Meus primos sacaram a tragédia antes da água subir. Levaram-na na hora exata. Levantaram boa parte das coisas. Salvou-se muito e perdeu-se pouco, em relação ao que se vê. Meus amigos ajudaram a tirar o que se perdeu, a limpar, reformar... Comprei alguns móveis, improvisamos outros com madeira de caixaria lixada. A coisa se reestabeleceu, fisicamente. A coisa permanece, psicologicamente.
Em relação à pandemia há uma inversão de angústias. A pandemia causou um caos psicológico desde o início. O medo de um vírus é um medo do invisível...a angústia é imaterial. Nas enchentes se enxerga tanto o medo, a coisa é tão pautada naquilo que é “material”, que os olhos não compreendem tanta concretude a sua frente. As cenas são tão concretas, que nem a literatura as subjetiva. A
escreveu na Newsletter dela:“As enchentes são pura materialidade. A passarela demolida. As linhas retas marrons que a água deixou. Poltronas e mesas de jantar inchadas no meio da rua, esperando pelo caminhão da prefeitura.”
Essas linhas não parecem descrever uma imagem, elas são de fato a imagem.
Se vê duas cidades. Uma cinza, concretizando o caos que se vê normalmente. Outra marrom, primitiva, bíblica, apocalíptica: do pó (de barro) veio, ao pó (o que sobra) voltarás. Se vê neste ambiente “sépio”, pessoas atordoadas, com roupas alheias que sobram, faltam um pedaço, pessoas úmidas e ressecadas pelo frio, pessoas que resistem às intempéries da natureza e da própria psiquê. Elas resistem como podem e até fazem festas de aniversário para crianças em meio ao caos e trazem dignidade para a realidade que não respeita a vontade humana. Manter-se são parece ser um ato de coragem. Que então, estas pessoas tenham pelo menos isso: coragem.
Coragem, gurizada!
Que bonitas essas imagens, Marcelo. Baixa texto.