Leituras, impressões aleatórias e críticas fundamentadas no pitaco #2 - Karl Ove Knausgård - Minha Luta-A Morte do Pai
Desleixo como estilo?
Li cento e poucas páginas do primeiro livro da série “Minha Luta” do escritor norueguês Karl Ove Knausgård. É um cara já bastante comentado na literatura contemporânea. Fiquei curioso...o que será que andam aprontando no mainstream das letras? Comecei a ler. As primeiras cem páginas me deram a impressão de que: é só isso mesmo? Me pareceu uma literatura meio “desleixada”. Algo do tipo: vou me sentar aqui escrever um monte de coisas aleatórias e vamos ver no que vai dar. Daí fui assistir um vídeo do Karl Ove falando sobre o seu processo criativo. Parece que ele ficou dez anos tentando escrever alguma coisa sem sucesso. Então o pai dele morreu e ele pensou: preciso escrever sobre isso. Mas não deu muito certo no começo então ele resolveu começar a escrever “qualquer coisa”. Fez mil e poucas páginas! Chegou um momento em que ele escrevia cinco páginas por dia, não importava o que fosse que estivesse escrito ali, o mais importante eram as cinco páginas. Tipo linha de produção…
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A todo esse processo ele chamou de “minha voz”.
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Até que ponto essa honestidade – ao que parece é um lance honesto por parte do Mr. Knausgård admitir meio que de forma pseudo-intelectualizada sua pseudo-voz que fala qualquer coisa à sua cabeça e ele sai escrevendo como o Chaplin apertava parafusos em Tempos Modernos – faz do Karl Ove um grande escritor contemporâneo?
Essa honestidade acaba criando uma outra ficção que acompanha o autor, aquela metanarrativa do escritor-personagem que sempre romantiza a literatura!
Hoje em dia, esse tipo de coisa serve mais para (pseudo)críticos literários de trinta anos que fazem a barba em barbearias open bar escrever alguma coisa em alguma rede social ou fazer um vídeo no Tik Tok…
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Fora essa atividade psicanalítica de boteco que é proporcionada pela carência freudiana de um totem literário (prática genérica que arrefece o nosso mundo contemporâneo de forma trivial e pueril em diversas outras áreas da vida), essa aura iluminada criada em torno dos “grandes escritores do nosso tempo” é quase sempre uma grande mentira...
(Claro, sempre têm exceções…tipo o Michel Houllebecq…o Emmanuel Carrère…)
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No entanto, é interessante a contradição entre o fato de Karl Ove admitir que sua obra de fôlego nasceu meio que por acaso, numa ação aleatória e meio que descompromissada e aquela história que boa parte dos escritores inventam para justificar sua obra como uma espécie de insight pessoal, uma “grande sacada reveladora”, etc…
É interessante que este fenômeno ainda exista em meio a um mundo em que as máscaras caem dia após dia e tudo parece cada vez mais uma grande mentira.
Admiro, portanto, a honestidade do Mr. Ove que, no final das contas serve como um álibi para o desleixo como estilo.
Mas, não dá pra negar, por conta disso, o escritor Karl Ove acaba se tornando um personagem de si mesmo…
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Essa aura em torno dele é, na verdade, marketing.
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Grandes escritores não dão muita trela. Falam pouco ou quase nada sobre suas obras. Quando convidados para falar, dão um jeito de mudar de assunto. Eles sabem que a literatura tem muito do leitor e, talvez menos do que se imagina, do escritor.
Lembro-me sempre de um dos grandes escritores contemporâneos, o francês Michel Houellebecq. Ele odeia tanto a exposição que quase todas as vezes que aparece publicamente, está com uma cara fechada e de mau humor. O Sallinger não gostava nem de ser fotografado. O Dalton Trevisan parece que nem conversa com as pessoas no dia a dia sobre sua obra. O Raduan Nassar publicou seus livros e foi criar galinhas…
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Quando leio um bom livro, não sei bem como explicar o que aconteceu. Quando busco explicação, travo em algum aspecto da linguagem que me parece insuficiente. Boa parte da interação do leitor com o texto se dá por uma espécie de estranhamento e espanto inicial. Logo, o bom escritor te joga pra dentro da história num processo de simbiose, transformando você, leitor, numa voz que dialoga com a história.
Até onde li o Karl Ove, tenho a impressão que aquela história não tem, como se diz, “nada demais” e isso me deixa meio sem vontade de continuar. A simples narrativa de memórias é como se fosse um diário a posteriori com pouca perspectiva literária e muita atividade psicanalítica… Se o estilo e a originalidade está no fato de escrever qualquer coisa que vem à mente, Mr. Ove não se preocupa em ornamentar o texto e, intuitivamente, surpreender o leitor com o mínimo: uma certa dose de bom gosto.
Desisti.
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Antes do Mr. Knausgard, enfrentei O Som e a Fúria do Faulkner. Se não tivesse assistido alguns vídeos de algumas pessoas comentando o livro, talvez não teria capacidade de compreendê-lo o mínimo possível para que algo ali pudesse fazer sentido e me arrebatasse de modo epifânico até a última página.
Foi preciso uma ajuda externa para entender a dimensão interna da obra.
Ainda assim, é uma obra difícil de digerir. Mas por que ela me causou este deslumbramento?
Não sei explicar muito bem e acho que isso explica muito bem.
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O Mr. Knausgard também me fez pensar sobre uma certa sensação de esgotamento da literatura contemporânea...mas isso é papo para outro texto. Por enquanto, deixarei o livro meio à vista para retomá-lo em algum momento e vamos ver se algum elemento aleatório me faz entrar de verdade na história e deixar de lado o aspecto metaliterário, para que este não atrapalhe aquilo que pode estar omitido pela onipresente aura-marqueteira da indústria totêmica dos “grandes”, aqueles que inventam ficções em todas as dimensões, inclusive sobre si mesmo.
Dicas, sugestões e papos-furados
Você pode assistir a uma honesta entrevista do Mr. Ove neste link.
A Tatiana Feltrin dá uns toques sobre O Som e a Fúria. O canal dela é ótimo!
Se você não conhece o Michel Houllebecq, para tudo e dá uma conferida na resenha do
do livro Aniquilar.
Em termos de qualidade literária, também prefiro os franceses que você citou. Mas tem algo magnético na série “Minha Luta” que ACHO que explica o sucesso do Karl Ove Knausgård: o fator fofoca hahaha – isso de ele ser o próprio personagem. Tal fenômeno talvez explique também o sucesso das newsletters estilo diário ou blog dos anos 2000 – as pessoas querem saber da vida dos outros.