O crepúsculo dos ídolos
De vez em quando eu paro um que outro na escola, que fica saracoteando pelo pátio com fones de ouvido, e pergunto: “que tu tá ouvindo aí, Bixo?”. Noventa e nove por cento dos perguntados têm a mesma resposta: “Peraí, deixa eu ver!”. Ou seja: eles não sabem o que está rolando na playlist que o Spotify definiu antes mesmo deles scrollarem na plataforma!
(Aliás, fiquei sabendo desse novo verbo, o “scrollar”, dia desses, quando uma menina falou espontaneamente num podcast que eu e outro professor organizamos na escola. Disse ela que passou a pandemia “scrollando”. Eu como já sou meio tiozão demorei uns trinta segundos pra entender o que aquele termo significava – tempo demais para os padrões atuais. Enfim, “scrollar” significa alisar a tela do seu smartphone com a ponta do dedo indicador em busca de uma dose rápida de serotonina!, só pra esclarecer...)
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Vez que outra, quando começo em uma turma que não conheço, levo um quiz com perguntas aleatórias, de conhecimentos gerais. Dentre elas, tem uma que é a seguinte: Qual destas bandas também era conhecida como os garotos de Liverpool?
a) Metallica
b) Nirvana
c) Rolling Stones
d) The Beatles.
Noventa por cento não sabe a resposta. Vinte por cento acerta no chute. Para os dez por cento que marcam com convicção, eu provoco: “diz aí uma música dos Beatles que tu gosta...”. Em uma única vez, uma menina disse “Help”.
“Please, help me!”, eu disse a mim mesmo.
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É estranho pensar que as novas gerações, em geral – noventa por cento segundo a minha estatística de boteco –, não conhece a banda mais famosa de todos os tempos. Como pode um ícone tão relevante para a cultura pop moderna, que consolidou padrões em diversas esferas do mundo do showbiz, que etcétera etcétera e tal, como pode, cara, essa instituição musical, que ditou arquétipos, modelos...que serviu de referência para praticamente tudo que veio depois, como pode os THE BEATLES estarem tão distantes da realidade do público adolescente?
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Não é uma pergunta fácil de responder. É como todas as perguntas do mesmo gênero: complexa. Mas há um ponto relevante. A gurizada não tem referência, ou as referências são efêmeras demais, e não dão tempo para aquele tipo de intimidade que a geração anterior tinha com seus “ídolos”.
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Por outro lado, a própria formatação do estereótipo do “ídolo” já não existe...ao menos não da mesma forma como se pensava o “ídolo” na segunda metade do Século XX. O “ídolo”, se é que ele existe, não sobrevive à enxurrada de ofertas scrolláticas das redes sociais e demais plataformas... O “ídolo” sobrevive no tempo das efeméridas: um dia, se tanto...ele nasce com o sol, pela manhã, e morre, no raiar do dia. O “ídolo” é como o gato: um animal crepuscular!
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O livro do Nietzsche, ao qual o título deste texto faz referência, remete ao que ele, o filósofo do bigode mais respeitável da virada do último século, chama de filosofia do martelo. O que ele quer dizer, tentando simplificar a coisa toda – se é que isso é possível –, é que livre das instituições (ele bate com força no cristianismo, só pra dar um exemplo) ao homem só lhe resta a vida nua e crua. O martelo é uma espécie de ferramenta que destrói os valores construídos pelas instituições. Mas segundo o filósofo aí está a chave central da coisa: é o homem por ele mesmo, livre de dogmas institucionalizados. Ele, o homem, se tornaria um super-homem, se soubesse lidar com essa responsabilidade.
Era um romântico, o Nietszche...
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Mas, convenhamos, ele acertou, em partes, no que dá pra se chamar de uma espécie de “prognóstico”. Valores são referências. No entanto, estes valores parecem ter sido esmagados ao ponto de, como disse o Bauman, o Zygmunt, passarem do estado sólido para o líquido. Tudo se dilui, inclusive os “ídolos”, que no final das contas, são (ou eram) referenciais...
...e aí estão os meus alunos que não sabem muito bem o que estão ouvindo, sendo manipulados pelo algoritmo, sem nenhum tipo sólido de autonomia!
(que força terão eles para serem autônomos?; a diluição dos valores referenciais não produziu uma espécie de criptonita que repele o ideal nietszcheano?)
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Bom...
Pra não soar como um tiozão chato e afirmar minha condição de sapiens ocidental contemporâneo, quero dizer que não olho com apelo moral para a coisa toda. Não peso o certo e o errado quando analiso o negócio... Apenas constato.
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Há um novo jeito de se relacionar com as coisas. Vivemos no enxame, como escreveu o Byung-Chul Han e é cada vez mais difícil de fazer um diagnóstico – que dirá um prognóstico – do que quer que seja. Qualquer tipo de previsão tem a credibilidade que tinha a Mãe Dináh dando pitaco no Faustão no domingo à tarde.
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A melhor pergunta que podemos fazer, entretanto, é: quais são os seus ídolos hoje?, e depois scrollar até a próxima martelada!