FISSÃO FICCIONAL
O intervalo entre a realidade e a ficção; a literatura, a mentira e a realidade
O John Lennon andava meio de cara com a vida. Vivia uma vida suburbana bem entediante numa mansão de 27 quartos, numa parte meio proletária de Londres. Era início de 1967. Estava casado com a sua primeira esposa, Cynthia Powell, com um filho pequeno já no mundo – fazendo aquilo que a contingência lhe preparou com muito bom gosto: ser filho do John Lennon.
Anos antes, parece que o Brian Epstein achou que a ideia de uma gravidez não cabia muito nos negócios da banda. A mídia iria se apropriar daquele causo de uma forma desgastante e não muito lucrativa. Mas o John não seguiu os conselhos empresariais do seu empresário e acabou engravidando a Cynthia e em 1963 veio o Julian...
Daí caiu naquela vida de, digamos, proletário: escreve música, produz um álbum, volta pra casa, senta, lê o jornal, dá um beijo na esposa e um afago na criança e dorme mais cedo – claro, o Mr. John dava as suas escapadinhas, mas dizem que sempre voltava pra casa, pra não perder a hora do chá. Entediante para um cara do calibre do Mr. John Lennon...
Pra piorar, imagina, o cara olhava pro lado e via o seu amigo Paul dando altos rolês, curtindo altos grupos de vanguarda em diversas esferas da arte que explodiam naquele fervilhante mundo do final dos anos sessenta, dando entrevistas para revistas underground de alto valor simbólico e ainda...Solteiraço da Silva – somente em maio de 67 é que ele se engataria com a Linda.
Pô, que tentação para o John, hein!
Em 1966, ele conhece a Yoko Ono. Eles começam uma relação bastante próxima e o John é fisgado pelo anzol vanguardista daquela artista de...vanguarda! Ele se interessa pelo minimalismo da artista Yoko (minimalismo, penso eu de forma áspera e mal-humorada, um adjetivo pra dizer que a tal arte de vanguarda não tinha o mínimo de arte...) e começa a levar aquele lance todo para os Beatles. Mais tarde, todos sabem, a Yoko fisga outra coisa do John...
Certo dia, então, ainda casado com Cynthia, sentado na frente da tevê com um pacote de salgadinhos do lado, Mr. John assiste a um comercial da Kellog’s e tem uma epifania. Se dá conta do seu estado-de-tiozão e dá um jeito de sair daquela vida entediante da mansão de 27 quartos. No mesmo dia compõe a música “Good Morning, good morning”, que entraria no Sgt. Peppers. Curte só a letra e tire suas conclusões a respeito desse momento particular que vivia nosso querido Beatle:
Good Morning Good Morning
Good morning, good morning
Good morning, good morning
Nothing to do to save his life call his wife in
Nothing to say but what a day
how's your boy been
Nothing to do it's up to you
I've got nothing to say but it's O.K.
Good morning, good morning...
Going to work don't want to go feeling low down
Heading for home you start to roam
then you're in town
Everybody knows there's nothing doing
Everything is closed it's like a ruin
Everyone you see is half asleep.
And you're on your own you're in the street
After a while you start to smile
now you feel cool.
Then you decide to take a walk by the old school.
Nothing has changed it's still the same
I've got nothing to say but it's O.K.
Good morning, good morning...
People running round it's five o'clock.
Everywhere in town is getting dark.
Everyone you see is full of life.
It's time for tea and meet the wife.
Somebody needs to know the time, glad that I'm here.
Watching the skirts you start to flirt
now you're in gear.
Go to a show you hope she goes.
I've got nothing to say but it's O.K. 1
É isso aí, John, a arte salva!
Daí saiu o Sgt. Peppers e os demais discos vindouros, todos mais ou menos regados a chás de lisergia. Mr. John se casa com Miss Yoko em 69 e os dois então entram no circuito mais descolado das tais vanguardas artísticas que floresciam em meio a um jardim bastante adubado por ideias que constatavam já um esgotamento, mas um esgotamento ainda criativo (e, claro, por vezes, também, bizarro...)
***
Lá pelos idos da primeira metade do Século XX, nosso amigo Albert Einstein dava palestras a respeito das intrincadas ideias que até então desenvolvera sobre o Universo.
Reza a lenda que em certa ocasião, Mr. Albert foi palestrar no interior dos Estados Unidos, em uma cidadezinha bastante isolada. Dizem que era tão isolada que a notícia da palestra foi dada no boca-a-boca, lá não chegava nem jornal...
Pois o Mr. Albert tinha um motorista particular que sempre o levava para seus encontros e já havia assistido aquela palestra trocentas vezes. Bem-humorado, o motora sugeriu ao físico que trocassem de lugar, que ele faria a palestra enquanto Mr. Albert ficaria atrás da direção. Einstein topou a parada. Botou o quepe e escondeu o cabelão e partiram para a escola onde a palestra seria apresentada.
O motora mandou bala. Apresentou com propriedade e a plateia, meio sem entender a complexidade da coisa toda, aplaudiu e ficou extasiada com tamanha inteligência. Mas...em certo momento, um professor de matemática fez uma pergunta cabulosa ao nosso querido motora-quântico. Esperto e ágil, na velocidade da luz, o “palestrante” disse: “meu amigo, essa pergunta é tão simples de resolver que eu vou até pedir para o meu motorista responder pra ti!”, e chamou o Einstein, de quepe e tudo!
E assim a brincadeira foi revelada e a história entrou para a História.
***
Existe a realidade e existe a ficção. Poderíamos pensar que a realidade também não passa de uma ficção um pouco mais dura, mas deixemos essa discussão para outro momento...
E existe este espaço em que a imaginação se apropria do real para inventar uma realidade própria... É um espaço que não é nem uma invenção propriamente dita, nem uma descrição objetiva de um fato: é um limbo ornamentado que existe como aquilo que se gostaria que fosse verdade.
Nada garante, por exemplo, que estas histórias acima aconteceram de fato como relatadas. Mas seria muito legal se fossem assim, pois parecem mais interessantes. Dá pra imaginar um John Lennon pai de família sentado no sofá assistindo tevê depois de compor um novo hit para os The Beatles? Dá. Dá pra imaginar o Einstein sentado na plateia assistindo a própria palestra e rindo por dentro? Dá. E esse que é o grande barato da coisa.
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Acho até que boa parte do imaginário construído para formar as civilizações ficaram neste limbo. Nós estamos condicionados a acreditar na mentira porque a mentira é quase sempre mais fácil de acreditar: ela é sempre adornada de elementos persuasivos que despertam nossa curiosidade.
Sempre que alguém me conta uma história meio sem pé nem cabeça, aí sim que me interesso, porque em algum momento ela vai ficar inusitada, irreverente e, portanto, interessante.
Nas aulas, muitas vezes acabo ornamentando as histórias para deixá-las mais atrativas. Não é preciso muita pirotecnia, mas para ensinar Romantismo é preciso inventar muitas alegorias!
Como escreveu o Manoel de Barros: não sou da informática, sou da invencionática.
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E você já produziu uma fissão ficcional hoje?
Pseudo-glossário de fatos inverossímeis:
Diz que a história do Einstein foi contada pelo Marcelo Gleiser no livro A Dança do Universo… Eu li o livro, mas não lembro da história.
A história do John Lennon eu vi no Sarau Elétrico, evento tradicional de Porto Alegre, desta semana, contada pelo Arthur de Faria.
Você pode ouvir a música Good morning, good morning neste link.
Bom dia, bom dia
Bom dia, bom dia
Bom dia, bom dia
Nada a fazer para salvar a vida dele, chame sua esposa
Nada para dizer além de mas que dia,
"como está seu garoto?"
Nada para fazer, é você quem decide
Eu não tenho nada para dizer, mas tudo bem
Bom dia, bom dia, bom dia
Indo para o trabalho, não quero ir sentindo-me desanimado
Indo para casa você começa a perambular
Então você está na cidade
Todo o mundo sabe que nada está acontecendo
Tudo está fechado, é como uma ruína
Cada um que você vê está meio adormecido
E você está sozinho, você está na rua
Depois de algum tempo você começa a sorrir,
agora se sente legal
Então você decide dar uma volta perto da velha escola
Nada mudou, ela ainda está igual
Eu não tenho nada a dizer, mas tudo bem
Bom dia, bom dia, bom dia
Pessoas correndo em volta, são cinco horas
Por toda parte na cidade está escurecendo
Cada um que você vê está cheio de vida
É hora do chá e de encontrar a esposa
Alguém precisa saber as horas, estou feliz por estar aqui
Olhando as gatas, você começa a paquerar
Agora você está em ordem
Vai para um show, você espera que ela vá
Eu não tenho nada a dizer, mas tudo bem